quarta-feira, 1 de março de 2017

Conto: Restos do Carnaval

Livro: Felicidade Clandestina

Autora: Clarice Lispector

Editora: Rocco

ISBN: 85-325-0817-0


Este conto de Clarice Lispector traz mais vez uma passagem da sua infância. É o desejo íntimo de uma garotinha de oito anos que quer curtir o Carnaval pelas ruas do Recife.

 "Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu”.

Sob uma ótica nostálgica, Clarice fala dessa atmosfera de festa dentro da sua perspectiva pessoal, do conflito de uma criança diante das manifestações de alegria, de tantas pessoas diferentes, do quanto se sente assustada e maravilhada ao mesmo tempo. Ela nunca havia participado de fato do carnaval, nem nunca tinha se fantasiado. Mas ganhava confetes e lança-perfume, o que a já deixava muito feliz. Ficava observando os foliões até tarde da noite pela escada do sobrado em que morava. Achei bem interessante o momento que ela escreve sobre as máscaras, que são um artifício para festas, mas que para ela, de certa forma, muitas pessoas usam máscaras o tempo todo, em seus próprios rostos.

“E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara”.

Nesta época em sua casa as maiores preocupações eram para a doença de sua mãe, portanto os adultos não se preocupavam com o seu carnaval de criança. Mesmo assim sua irmã enrolava seus cabelos lisos, porque a menina os queria que fossem frisados, nem que fosse apenas nos dias de carnaval. 

“Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice”.

Por sorte aquele carnaval foi diferente, quase milagroso. A mãe de uma amiga fez para ela uma fantasia de rosa com papel crepom. Nesta passagem do conto, fica explícita a felicidade de Clarice, que se sentiu “tonta”. Novamente o desejo de fantasiar-se, de sair da mesmice, de sentir-se especial.

“Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma” (...) Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa”.

Durante os preparativos sua mãe piorou e pediram-lhe para comprar remédios. Saiu correndo pela rua, vestida de rosa, sem batom e sem ruge. De certa forma essa “nudez” de pintura a deixou abalada e triste, como se tivesse morrido por dentro. Nessa hora, o carnaval não teve mais sentido. Sentia-se culpada em ficar alegre com a mãe adoentada.Ela não se considerava mais uma rosa, os seus encantos de fadas tinham desaparecido e o encantamento também. Após a agitação, sua irmã consegue enfim pintar o seu rosto,  e ela sai pelas ruas com sua amiguinha. Mas ela se sente como uma palhaça. O que traz sua alegria de novo é a abordagem de um garoto mais velho, que joga confete em seus cabelos.

“Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos, já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa”.

É nítido que este conto traz uma carga emocional muito forte. Clarice expõe sua infância pobre, a difícil realidade familiar, a urgência pela felicidade, a necessidade de ser outra pessoa e também o sentimento de culpa em relação à doença da mãe. Há também um rito de passagem, onde o fantasiar-se e pintar o rosto é como se deixasse para trás a garotinha e nascesse então a mulher, a rosa. É o desabrochar da sua feminilidade. Mais uma vez com maestria, Clarice traz uma história sensível, onde não escreve e sim se escreve.





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